Colagem Em Dois Tempos

 

A moça traz consigo uma expressão delicada e vazia
Meu velocípede esquecido na praça
Rubor e paixão, mão recolhida e fria, senão
Três voltas pela praça serão três anos perdidos?
Amor casto e disponível, pouco há o que buscar
Onde procurar? Atrás do cinema e sua tela vazia
Fotografias percorrem meus olhos, um filme
Pele clara e perfumada, lábio entreaberto
É uma ânsia incontrolada, é tão leve o teu arfar
No túnel do tempo há um lugar para o que sobrou de mim
Cinderela e Branca de Neve põem-me a chorar
Brinquedo delicado, meu carinho onde está?
Olhos claros, o que buscas é mais além
Do meu quarto escuro, da cama onde pulamos
Meu irmão e eu, embaixo do sofá procuro
Recuso teu convite, não quero, não vou aceitar
Meu passado não inclui, teu futuro me exclui
Na floresta, meu avô usa uma boina e dá-me água
Nas cidades me perdi, incúria e desilusão
A quem dás este amor, se já te vais e eu não sou?
Quem vai quebrar os discos de outrora?
Setenta e oito rotações, meu coração dá voltas
Alva e alva e alva, pele com que roças em cócegas desnuda
Permuta, vivi a vida assim, dos outros era eu aos poucos
Arrancar-te de mim, o jogo de porcelana carmim
O café das quatro esquenta no bule, é tarde na serra
Minha mãe parte o bolo e sorri, e tu já partes e ris
Há um poço a escavar, o que procuro é tão profundo!
O moço tem uma forquilha e água vai achar
Na igreja, teus futuros filhos, aves atentas, já olham-me interrogativos
Um Cristo desnudo agora vagueia, impróprio, desorientado
Escapou da Bíblia, tua correta identidade, a minha idade
Meu pai jaz doente, tenho medo do que não sei
Mais pavor ainda do que já antecipei, tu e o teu rei
Queres o que queres e não me queres, me queres
Abajur, bibelô, complemento e acessório, decoração.
Vai embora o avião, solto pelo aeroporto sou criança
A tarde cai e a orquestra toca Chopin,
Minha mãe, ao piano, sorri. Parecia feliz. Não durou.

Uriel da Mata
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