A cicatriz (parte II)

 
Ela acordou finalmente, não sabia dizer por quanto tempo dormiu, mas quando acordou somente pensou em olhar para seu corpo e procurar nele onde fora se alojar o golfinho provocador de uma noite tão mágica: nos seios, nas pernas, braços, costas, mãos, pés e nada. Nada de encontrar o desenho.
            Achou que não havia procurado com exatidão e tornou a mexer e esmiuçar o próprio corpo a procura do desenho e nada de achá-lo.
            O pensamento de que tudo fora apenas um sonho passara por sua cabeça, mas a percepção de realidade ainda se encontrava intacta em si, sabia que vivera tudo, lembrava-se do seu cheiro, do seu calor, dos seus mergulhos. Lembrava da primeira vez que a tatuagem se movera, da segunda e de cada parte de seu corpo visitada por sua escolhida cicatriz. Não seria com facilidade que entregaria sua experiência mais maravilhosa e realizadora ao campo do abstrato. Vivera algo concreto, algo real. Algo surpreendentemente real.
            Foi até o tatuador e nele expôs o sucedido, não teve os créditos deste e pediu então uma nova tatuagem, um novo desenho, o mesmo; um outro. Queria sentir tudo novamente, a mesma intensidade, a mesma sensação epifãnica, o mesmo poder e volúpia.. Tudo com a mesma força e caráter místico...
            O tatuador se assustou com toda aquela história e recusou-se fazer um novo desenho. Sem coragem de procurar outro desenhista rumou para casa e foi ainda no caminho que sentiu algo bater de maneira estranha em seu peito, um quê de força e dor que reconheceu no mesmo instante. Correu desesperadamente para casa com a dor a aumentar, entrou sentindo algo tomar conta de si e controlar seus movimentos, arrancou todas as roupas e nua percebeu um emaranhado de golfinhos a nadar por todo seu corpo e toma-la de assalto, fazendo dela seu oceano. Era infinita a dor que sentia, seu corpo povoado por centenas, milhares, milhões de tatuagens, bilhões talvez. Todas as formas de vida marinha: golfinhos, tubarões, baleias, peixes simples, peixes ornamentais, peixes com formato de espinhos que lhe furavam o corpo, peixes com formato de cavalos cavalgavam por ela, um maremoto se formou em seu baixo ventre, uma tormenta matou dois surfistas que buscavam domar as ondas de seus seios, em suas sobrancelhas oito barcos naufragaram, em seus olhos um arquipélago inexplorado, havia em seu sexo todo um ecossistema revelador da criação do universo, sereias hipnotizavam marinheiros nas curvas de suas nádegas, um suicida se atirava em uma das baías de seu braço, um náufrago numa jangada alcançava as portas de seu coração. Caminhava por seu cérebro o primeiro dos golfinhos: originador de toda aquela história, navegava feliz por todo seu corpo: dos cabelos à raiz dos pés, dos dedos das mãos ao gosto de sua língua.
                Foi então que sentiu um poder maior que os outros subir por sua espinha, tomar conta de seu coração, pulmão, ventre, útero e de modo totalmente desorganizado pressiona-la de dentro para fora e fazer cada vez mais força, cada vez mais força, cada vez mais força, até que num grito ela explodiu e seus pedaços se espalharam por todo o infinito transformando a moça num novo e rico oceano. (Marcel, Mauro. “A divina tragicomédia humana” 2007, pág. 100 – 103; Ed. Scortecci, São Paulo.)
 

Mauro Marcel
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