A cicatriz (parte I)

             Ela subiu as escadas pouco confiante, pediu para olhar algumas figuras assim que chegou, um pouco insegura escolheu a figura de um golfinho e não sem segurança escolheu o lugar do corpo onde ficaria cravada aquela marca de sua juventude, de sua personalidade: a sua tatuagem. Há tanto aguardada, mas nunca com a coragem da realização. Dor, medo, preconceito, insegurança.                         

              Hoje nada disso a molestava. Tinha em si a segurança dos generais, a coragem dos capitães e a convicção que só ela possuía.
            Seria um golfinho e seria no seio. No direito. Somente ela e quem ela escolhesse poderia ver ou tocar se desenho, sua imagem, sua tatuagem. Tinha uma desculpa um pouco romântica em tal escolha, ela de fato queria ser surpreendente: olhos de recato, coração aos pulos, prenhe de vontade e volúpia, um oceano a ser navegado por outro corpo.
            Agüentou a dor sem reclamar e reclamando. Doeu, mas estava definitivamente em seu seio a cicatriz voluntária que faria dela um ser mais feliz, talvez um pouco mais realizado. Não saberia explicar e nem eu tão pouco pensar sobre o que fizera. Sabia que estava feliz com o desenho, e plena de alegria foi pra casa aproveitar o restante da noite dormindo.
            Acordou, sorriu para o teto e passou a mão pelo corpo. Não sentiu no seio dor alguma, não sentiu no lugar da tatuagem a tatuagem, de fato o golfinho sumiu do seio direito e após algumas investigações pormenorizadas foi descoberta em sua perna esquerda. O modo como a tatuagem do golfinho caminhou de seu seio para sua perna é que seria um mistério.
            Por incrível que pareça não deu muita importância ao sucedido, foi para seu emprego e trabalhou durante todo o dia sem pensar no assunto, quando voltou para casa lembrou-se da tatuagem e verificou no seio, a tatuagem se encontrava na perna. Não pensou ainda assim no assunto e após um banho, alguns telefonemas, um filme na televisão, foi dormir. Ao acordar sentiu um comichão nas costas, a tatuagem estava lá. Nas costas.
            Percebeu então, como que num momento epifânico, o que se sucedia em seu corpo: tinha uma tatuagem viva. Era uma tatuagem que escolhia o lugar onde acordaria. Estava hoje em suas costas, mas acordou no dia seguinte em seu braço canhoto. Acordou em sua nuca certa feita, acordou em seu rosto numa quinta-feira, neste dia faltou ao trabalho, não teria como explicar um desenho de um golfinho na face, preferiu o recolhimento e neste dia ficou sozinha em casa e foi aí que ocorreu algo sublime e mágico, a tatuagem moveu-se á luz dos seus olhos.
            Foi de frente para o espelho que viu o golfinho dar um pulo e se alojar entre seus seios, bem no meio do peito. Teve algum medo, mas sem nada entender continuou sem entender nada. Nua estava e nua começo a dançar pela casa. Ligou a música em seu máximo volume e num transe solitário e sensual passou a seguir alguns passos regidos pelo seu instinto de mulher puramente fêmea.
            Mexia-se com uma exatidão cambaleante, parecia cair num jogar e mover de braços, mas não era o que acontecia, quando se esperava um passo para a esquerda era para o lado oposto que havia o movimento e foi isso e vice versa até que começou a brilhar em seu peito, algo parecido com uma luz, uma estrela, um cálice, um golfinho.
            O animal saltou e começou a fazer parte daquela sensual dança. Virava e vibrava como que alado. Saltava para fora e para dentro de seu corpo. Mergulhava e sorria como um verdadeiro habitante dos mares.
            Aquele momento durou muitos anos e apenas alguns segundos, um século talvez. Nenhum dos dois se cansava do balé que os tornava algo único e apartado. Eram ambos, uma forma de vida ainda não catalogada, uma forma de vida que precisava um do outro para continuar existindo.

Mauro Marcel
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