Manhã na Serra

 

Desce à terra, solene como um balão, o dia
Já luz a manhã, claridade penetrante e fria
Cobre o vale, incendeia o campo seco
Afugenta a escuridão e a neblina
Sua capa de lençóis, a cambraia mais fina
Manto que a noite, silente e descuidada
Deixou para trás

Escura e esmeralda, desperta a mata
Sob o calor, luz amarela que agora avoca
Sons e cheiros há pouco adormecidos
De musgos, de plantas e árvores
A gotejar o último suor da madrugada
Na encosta iluminada e íngreme

Flores abertas a encarar o sol: um ipê revela
Do que é feito o inverno e a serra

Pela vereda, morro acima, ladeira abaixo
Um homem caminha semi-adormecido
Vai, meio índio, meio cidadão de um país amarrotado
Buscar não sabe bem aonde o sustento
Algo que possa aplacar esta fome
Antiga e essencial, de muitas outras gerações
Fome retrasada e verminosa
Que arrefeceu as esperanças dos seus filhos
E deixou seu cachorro ainda mais magro

Voam alto, agora, os urubús onipresentes
Velhos sábios a reciclar a natureza,
Inspecionam a paisagem, circunspectos
E, da delicada floração que é o dia ainda incipiente
Nos recônditos da esquecida América do Sul
Brota a miséria mais triste, o contraste mais forte
Para as orquídeas e as samambaias
E os beija-flores no jasmim-manga

O roxo, frágil postulado de beleza dos jacarandás
Anuncia a primavera iminente e eternamente postergada
Para o homem sem passado e sem futuro.

 

Uriel da Mata
© Todos os direitos reservados