O canto da cigarra

 
Tinha uma música tocando ao fundo e pessoas cantando outra canção. Nada estava acontecendo que chamasse a atenção de algum desavisado, apenas uma cigarra do outro lado da árvore exalava seu cantar singular, dando a todos a impressão de que a vida teria algum significado oculto.
            A canção prosseguiu durante toda a tarde e sem saber imitávamos o vento em nossa cantilena. Fácil. Estranho. A cigarra parou de cantar por um instante. Nós paramos de sorrir durante toda a nossa vida. Alguém trouxe um instrumento musical, um instrumento qualquer, não estava afinado, ninguém sabia tocá-lo corretamente, mas ficamos felizes com sua presença, era algo de relativamente novo em relação à vida, um pouco de profissionalismo à nossa arte. A cigarra em seu lado da árvore continuava seu canto, nós, pelo nosso lado, inventávamos poesias e estratégias para compor outras canções. Morríamos de medo de pararmos pra pensar no que estava acontecendo naquele momento, se alguém pensasse sobre o conteúdo de nossa felicidade, com certeza a perderíamos.
            Foram necessárias várias passagens para que nosso poema coletivo se transformasse em música, a cigarra refletida num instante, sem cantar cantava e encantava o silêncio. Olhávamos para as meninas que compunham nosso grupo com certo ar de mistério. Seria possível uma orgia naquele lugar? Seria possível um amor verdadeiro? Estaríamos vivos e felizes como a cigarra quando o poema acabasse?
            Vamos para Holywood, vamos para Feira de Santana, vamos pra qualquer lugar, viajemos em qualquer direção, desde que saibamos que a felicidade em uma tarde de poesia é tão frívola quanto a verdadeira e eterna felicidade. Deixemos de acreditar que há pessoas felizes neste mundo, deixemos tudo pra trás. Tudo. Da mesma forma como o tempo deixa os seres humanos pra história e como deixaremos o canto da cigarra extinto em nossa memória. Tudo será extinto como seu canto, e a vida é tão alta e grave. Tudo deixará tudo penando.
            A árvore balançou com o vento e pensamos que o clima transformaria o ar em água, o tempo em vento e nós em ausência. Mas o seco resistiu ao úmido naquela tarde e prosseguimos na tarefa de compor a canção de nossas vidas.
            Não houve lágrimas e o primeiro verso nasceu no intervalo entre o que foi e que jamais seremos. Estava tudo pronto e preparado para nossa vida.
            Então nascemos. Conseguimos resistir à tentação da renúncia. Estamos cada vez mais verdadeiros e longe estamos da felicidade e do canto daquela cigarra que amanheceu extinta e completa aos pés daquela árvore.

Mauro Marcel
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