I
Nem toda mordida sacia os dentes
o esquecimento às vezes pisa
no cimento fresco do peito
deixando pegadas de pardal
solas de coturno 48
um nome escrito
com o dedo na ferida
II
não vemos pressa no ultrassom
não há cólicas ou fobias na selfie
uma lápide não diz muita coisa
uma foto de quarenta anos atrás
sempre tem muito o que conversar
III
perguntam sobre a gente
indagam sobre o amor
mesmo eu sem murmurar
ou entornar poemas
ainda estou no amor amordaçado
IV
todos os pombos pousam
ao redor do espantalho
que só espanta pessoas
que cagam pra ele
V
tem dias que estamos com o diabo no corpo
tem dias que estamos de fogo
há dias estamos apagados
adiados pelo futuro
amassados feito dinheiro de bêbado
o troco do pão
o dinheiro do almoço vendido pra comprar o jantar
torrado numa mesa de baralho
VI
a cidade não tem paisagens
a cidade fala pelos cimentos
a cidade só tem tatuagens
e arrependimentos
VII
eu deveria gritar
o grande poema de estourar alto-falantes
de acordar latidos e fodidos
acionar sirenes e alarmes,
voar até a casa dela
mas o grande poema não sai do papel,
os carros dormem sem roncos
os motores dormem fudidos
e acho que vou gripar
qual é a casa dela?
quem é ela?
VIII
quando eu escrevia incontáveis versos ridículos
mamãe pregava seus infindáveis versículos
tudo em nome do amor
IX
a lua nunca mofa
mesmo com tanta fossa
tanta foda meia-boca
tanto peito sendo cova
X
devo escrever
sob outro poema sobre um crime que choca
ovos de infinitas serpentes
ou deixar para outros “de repentes”
o choque que eletrocuta
o oculto que choca a gente?
UM DE AMOR
impossível querer o amor limpo
asséptico e imune
o amor está cheio de sangue
a alma está encardida de sangue
o beijo tem gosto de sangue
pois o murro venho primeiro
e é o coração o que bombeio
e da missa não sei um terço
quando o amor exerço
feito um dente de leite
mordendo o seio
de quem não me quer como filho.
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