'RÉQUIEM AO MEU VELHO'

'RÉQUIEM AO MEU VELHO'

O meu velho foi homem que nasceu no mato, mas perto de rio e do mar, e jovem saiu para o mundo. Ele que era da roça foi para mar adentro, até chegar em navio da marinha mercante, mas não quis ser mestre de navio, pois não gostava de mandar.

O meu velho foi um homem da água, mas que nunca aprendeu a nadar e nem nos viu crescer.

Lá pelos idos dos anos sessenta ele era um visitante itinerante em nossa casa, que a gente criança via de meses em meses, e olhe lá.

Quem era aquele senhor, que vinha de tão longe e que eu olhava como um ser distante?

Quem era aquele que vinha muito pouco, mas que nunca deixou de vir, mesmo que fosse uma vez no ano?

Não importava as distâncias, nem em que porto estava, nunca nos deixou faltar nada. Ele vinha nestes tempos em tempos, e não era possível, para mim que era muito acabrunhado, saber como me comunicar.

Ele não sabia puxar conversa em casa, talvez, por também se sentir um estranho naquele ninho, sem saber nada o que dizer. Talvez nós até o assustássemos, aqueles cinco estranhos a lhe olhar.

É, ele era homem do mar, e não sabia como com nós, em terra, se comunicar. Até que, apesar de tímido, comecei a tentar uma aproximação, já como adolescente. Quando dava, e se o navio estivesse por perto, eu dava uma cantada para ir lá passar o domingo, a comida era muito boa. Aquilo me encantava.

Aquele cheiro de aventura que só navio dá.

Aquelas escadas balançando, deixando a terra segura lá embaixo. Subia meio que segurando naquelas cordas inseguras. Mas mesmo assim, era difícil do velho se aproximar, não sabíamos muito o que conversar, dois tímidos.

Mas eu ficava maravilhado com aqueles corredores estreitos, aquelas escotilhas, aquelas cordas com diâmetros enormes, que eu nunca tinha visto, e principalmente aquela cozinha, sempre com o cozinheiro festeiro, pois em cozinha nunca pode faltar alegria. Aqueles refeitórios com tanta fartura, a casa de máquinas...

Aqueles homens diferentes, uns de pouco falar, outros de falar muito, cada um com o seu sotaque. Eram representantes de todo o povo brasileiro, cada um com as suas vivências, acostumados às solidões, longe dos lares, em tempos que a melhor comunicação ainda eram as cartas. Só lembranças familiares, enquanto viviam o seu presente, como se eles fossem, e na realidade eram, na convivência, mais próximos entre eles que os próprios familiares.

Até que aquele homem do mar se aposentou, e desceu daquela escada para nunca mais voltar às galés. E aí o bicho pegou. Como conviver numa família, vinte e quatro horas por dia, e que ele mal conhecia? Aquele velho passou uma boa barra. E nós com aquele estranho que não era de falar muito e que se sentia, acho, como um estranho no ninho.

Ficar na rua XV, conversando com aposentados, e outros velhos desocupados, não se tornou a sua praia e ficar em casa se metendo nos assuntos domésticos não se mostrou muito produtivo.

Foi para a rua procurar ocupação; o velho era boa praça; só não se acertava bem em casa. Foi fazendo amizades, ele se tornava bem-vindo, uma personalidade bem preenchida de tantas vivências e cativava, passando muita simpatia, mas nós em casa ficávamos sempre assustados e ele também.

Mas o meu velho foi crescendo na sua nova vida em terra e não podia é ficar parado. Foi de mansinho abrindo suas trilhas, assim como tinha aberto no mar.

Dentro da casa, invisivelmente houve uma divisão, a parte onde ficava o velho isolado, e o resto da turma com a D. Lela, que não via com bons olhos, aquele homem direto dentro da sua casa, embora nesta altura ele ficasse lá no fundo.

Mas eu queria conhecer aquele velho, abrir algum caminho. Ia lá, meio assustado, a D. Lela, não apreciava muitos estes contatos, que poderiam tirar a sua primazia.

E o velho que foi homem do mar, dentro de casa, se sentia um peixe fora d’água e continuava difícil de se chegar, estava acuado.

Eu nunca pedi dinheiro para o velho, mesmo quando não tinha nenhum. Sempre soube me virar, mas não sabia que caminho tomar na vida. Empregar-me não queria mais, não tinha tido boas vivências com patrões e nem com horários.

Até um dia que aquele senhor me deu uma dica, e que eu poderia ter algum resultado. Disse que me emprestaria um dinheiro para ir lá para o Rio Grande do Sul, na cidade de Caxias, vender uma mercadoria, que por lá iria faltar, e que só ele e mais dois tinham conhecimento disso, e na volta eu lhe devolveria o capital.

Deu-me pouco dinheiro, para não me deixar folgar e ter que sair na rua vendendo a mercadoria.

E eu chegando lá, apesar de muito intimidado, acabei tendo ‘ajudas’ e me dando bem e gostei do negociar. Já aí, em Porto Alegre, comprei mais da mercadoria e fui para o interior e depois pelo Brasil inteiro. Perdi a vergonha de pôr a cara para bater no meio do mundo.

E aquele velho, que era do mar, e se deu muito bem também em Terra, tempos depois me falou, que não aguentava mais me ver trocando a noite pelo dia, sem uma ocupação definida.

E aquele velho, que eu nem bem conhecia, dizendo poucas palavras, me encaminhou para a vida, como num toque de bastão mágico, e eu passei a ser próximo dele e a admirar muito aquele velho, que era um lobo do mar e que estava agora em terra.

Foi um dos maiores homens e um dos maiores negociantes que eu conheci, pois se deu muito bem também em terra, e o que mais eu admirei. Nunca conheci ninguém com aquela bagagem e aquela maneirisse que ele tinha e olha que eu conhecia a rua.

A facilidade de abrir as portas, sempre com aquele sorriso de quem sabe porque está rindo, era uma coisa admirável.

Aquele velho se tornou o meu melhor amigo e ai quando ele morreu, ai já em outra cidade, com outra família, naquela perto do rio onde ele tinha nascido, aos oitenta e sete anos, eu não fui ao seu enterro, pois não aguentaria ver gente falsa e que o maltratou, chorando perto do seu caixão.

Fui andar no quintal e curtir o sentimento que estava sentindo e mandar pensamentos para o velho que com certeza estaria me esperando, mas ai a minha esposa, para a minha surpresa, se chegou e disse que tinha avisado para ele não nos esperar, mas que desejávamos uma boa viagem para ele.

Alguns dias depois fiquei muito contente, e sorri dentro de mim, quando uma irmã minha falou:

'Que nunca imaginaria ver tanta gente no enterro do nosso velho e que um nosso primo, o que tinha me avisado da morte dele, muito rico, e muito chegado do velho, já tinha providenciado  tudo de primeira na parte material possível, para a ida do nosso velho quando ela lá chegou'.

Mas para mim, que o conheci tanto, mesmo só quando já era adulto, não foi nenhuma novidade todo aquele carinho pelo meu velho.

Aquele meu velho que era muito boa praça, mas nunca tinha aprendido a nadar,  nem  conviver em família,  e se sentia um peixe fora d’agua dentro do nosso lar.

‘Não é o lugar em que nos encontramos nem as exterioridades que tornam as pessoas felizes; a felicidade provém do íntimo, daquilo que o Ser humano sente dentro de si mesmo’ Roselis V Sass (graal.org.br)

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