O Bêbado


 
A noite perdeu-se das horas
e os ponteiros do relógio
feriram, como que espadas,
o vulnerável coração.
A madrugada surgiu ébria,
e nela ouviam-se versos angustiados.
Passo após passo,
o temor de tropeçar e cair,
ser motivo de riso,
enquanto sente a própria dor.
Um misticismo alcoólico,
a levitação dos sentidos embriagados.
O espírito quer fugir do corpo.
Cheio de si, num derradeiro esforço,
canta, violentando a escala musical.
A voz pastosa entope os ouvidos,
e até ele próprio reflete sobre o ridículo.
Não se faz suficiente a poesia,
nem mesmo a mais graciosa filosofia.
Tudo se liquifez,  
transformou-se em  fluidos biológicos,
detritos psíquicos.
E, então, vê-se um púlpito.
Talvez fosse um altar, sacerdote da noite,
distribuidor de bênçãos às sombras noturnas.
Já não existem faces específicas,
todos são apenas rostos imparciais.
O chão parece cada vez mais próximo.
O corpo diminuíra ou seria a distância?
Qual seria o botão a ser apertado?
Deveria ligar ou ser desligado?
Mas por que tantos ‘por quês’?
Basta um vintém e vale toda a hipocrisia,
e então vestir-se a rigor, num sorriso estúpido,
e encher-se de gestos, de jóias falsas
e, ainda que patético, fingir erudição
e discursar aos tolos postes que aplaudem.