Eu me arrependi de ter falado o que falei... Convidada a representar um eixo de discussão na Câmara Municipal, por ocasião da I Conferência sobre Transparência no município, segui apenas o que a apostila pronta já havia reservado sobre o tema. Confesso que não gostei do que falei naquele dia. Não era exatamente aquilo o que queria ter colocado. Por isso, me pego reformulando o discurso, sozinha, enquanto lavo a louça e a água ligeira, limpa a sujeira dos pratos: Boa tarde, foi com satisfação que recebi o convite para estar aqui. Acho que me chamaram porque esse assunto é complicado, embora o texto já tenha vindo predeterminado, vou falar das impressões que tenho da história dos homens. Por favor, não tentem se encaixar o tempo todo nos exemplos que vou citar, para não saírem daqui aborrecidos, mas se conscientizem de que alguns deles ilustram o que acontece no mundo do qual fazemos parte. Para início de conversa, ninguém aqui é transparente. Não na essência do que realmente significa a palavra transparente. Em algum momento de nossas vidas, beneficiamos uns em detrimento de outros. A cultura brasileira, da qual não podemos nos excluir, sempre valorizou a lei de “Gerson”, aquele da propaganda de cigarros que nos ensinou a tirar vantagens nas pequenas coisas. Quem tira vantagem nas pequenas coisas, habilita-se a tirar vantagem nas coisas grandes. Somos propensos ao erro. Veja que esta mensagem me inclui. Hoje fui colocada à prova e não resisti a uma tentação. Meu filho, pela manhã, me disse: - Mãe, faz um chocolate para mim! - Filho, o leite que temos não é suficiente para fazer chocolate para todos. Só dá mesmo para pingar um pouco no café de cada um. - Ah! Mãe! Está todo mundo dormindo, eles nem sabem que tem leite. Cinco minutos depois, estava o menino tomando chocolate. Digam-me, onde está a transparência? Ensinei ao meu filho que podemos fazer coisas enquanto os outros estão dormindo. Ensinei que não precisamos ser igualitários. Ele aprendeu a enganar, a não ser justo, entre outras coisas. Fui mau exemplo para ele, que estava precisando ser doutrinado numa causa tão importante. Temos levado experiências deste tipo para todas as instâncias da sociedade. Ou somos transparentes na vida pública e não somos transparentes em casa? Apoiamos o político A, porque ele nos dará um cargo comissionado; apoiamos a diretora B, porque ela facilitará a nossa vida na escola; compramos produtos de determinada empresa, e não de outra, porque no final do ano, receberemos como brinde garrafas de champanhe, entre outras coisas; escolhemos fulano de tal para prefeito porque ele manterá a situação de conforto vigente. Precisamos repensar as nossas práticas, cortarmos a nossa própria carne, sendo justos, dando bom testemunho. Primeiramente para os de casa, preparando filhos responsáveis para atuarem em sociedade, trilhando o caminho do respeito e amor ao próximo. Temos condições de mudar o rumo da história. Sabemos, contudo, que fazer o bem requer sacrifícios. Encontraremos barreiras se começarmos a fazer tudo certo, pois o “jeitinho brasileiro” criou cultura em nosso meio. Falo para mim mesma... Que já fui tentada e caí por diversas vezes. Entretanto, esse é o primeiro passo, reconhecer a ineficiência, a fragilidade e lutar contra as forças contrárias. Não sejamos simplórios em achar que os que vivem em extrema miséria são preguiçosos e gostam de viver de migalha alheia. A África não é sinônimo de pobreza porque seus habitantes recusam a labutar. Eles são o resultado de séculos de exploração, daqueles que sempre quiseram muito e não mediram esforços em matar, roubar, humilhar e destruir etnias inteiras. Não podemos salvar o mundo, porém podemos salvar a nós mesmos. E uma vez fortalecidos, resistentes, teremos condições de ajudar àqueles a quem o Darwinismo social condenou e que, na época, aceitamos a teoria como sendo justa e ainda batemos palmas. Incutiram em nós a cultura da concorrência, dos que chegam primeiro, mesmo pisando na cabeça dos outros. Isto não é discurso religioso. Mesmo porque, muitas religiões não se entendem, estão na disputa da maior fatia de adeptos, preocupadas com teologias teologizantes, vazias, que nada contribuem para a mudança do velho homem e suas práticas perniciosas. Mas, se ainda assim, buscamos em nossos credos uma razão para a nossa existência e ouvimos mensagens vivificadoras, como desassociá-las da Política, da História e de outros assuntos de interesse público? Como se consegue ser religioso de um jeito e político de outro? Estas palavras parecem simples demais para todos nós, pessoas preparadas e habilitadas para funções tão distintas. No entanto, o discurso não está de tudo perdido... Significa dizer: ou pingamos leite no café de todos ou apenas um irá tomar chocolate. Selma Nardacci

Selma Nardacci dos Reis
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