Nos olhamos pela última vez. Aquela foi a última vez que me vi nos olhos dela. Olhos grandes, negros. Como um poço que jamais nos permite desvendar sua verdadeira profundidade, seus mistérios.

Ela colocou os óculos, escuros como uma cortina preta, sempre sorrindo. Minha aliança prateada refletia nas lentes superficiais e frias. Insistente, inconveniente.

Ela se despediu com um sorriso decidido e amigo. Amizade. Era isso que havíamos decidido em silêncio. Como se todo o passado fosse um filme curto e intenso. Agora as luzes do cinema se acendiam.

Uma sala vazia, a rua deserta. Portas abertas, nos lembrando de um mundo lá fora, de um abismo entre nós. Ninguém nos observava, mas, ainda assim, conservamos nossas máscaras, nos escondendo um do outro. Meias palavras. Meias verdades. Como sempre.

Era sempre ela quem destruía o silencio, exigia a verdade em perguntas diretas. E depois escolhia cuidadosamente suas reações. Um jogo. Mas agora não havia mais perguntas. Palavras se tornaram momentaneamente desnecessárias, até censuráveis.

Na primeira vez que nos vimos a comunicação era perfeita, nos entendemos de cara, opiniões, humor, cumplicidade, corpo, bocas, mãos tudo se encaixava perfeitamente como se houvéssemos planejado. Eram idiomas diferentes, nos comunicavamos em inglês e italiano. Ela falava um inglês invejável, eu entendia mas falva apenas o básico. Era divertido vê-la repetir minhas palavras em francês e escutá-la falando um português incompreenssível e até atraente para mim.

Agora eu falava o inglês perfeito, mas palavra nenhuma interessava mais. Éramos silêncio.

Nossos rostos se aproximaram e por um momento o ar acabou. Senti a respiração dela se descompassar. A beijei no rosto com carinho. Quis como nunca ver seus olhos outra vez. Ajeitei seus cabelos bagunçados pelo vento. E como que por acidente, esbarrei em seus óculos. De relance vi seus olhos e uma lágrima que se esforçava em cair. Ela os arrumou rapidamente, rindo. Sorriu um sorriso aberto, que desdizia aquela lágrima que agora começava a molhar seu rosto. Como uma ilusão. Parecia que aquele sorriso nunca havia lhe saído do rosto. Ela sempre sorria, sorrisos diferentes cheios de histórias não contadas. Ela deu um passo para trás.

Confuso me ofereci mais uma vez a leva-la ao aeroporto. Ela tocou meu braço com firmeza e doçura. E me beijou o rosto com seus lábios sempre úmidos irritantemente convidativos. Já distante, já partindo. Como se cuidasse para não se aproximar mais do que o necessário, mais que o permitido.

Então olhando pra mim através dos óculos disse com voz segura: “Seja feliz”. E saiu passos largos calmos. Sem olhar para trás. Parou em frente a porta do táxi. Naquele momento, acreditei que ela fosse virar e me olhar. Desejei que ela ficasse, pensei em chamar, mesmo sem saber o que dizer depois de gritar seu nome. Engoli seco. A porta do táxi se fechou, fria.

Sentou-se no carro sem olhar para a janela, distraída procurando qualquer coisa na bolsa que a fizesse se voltar a seu futuro, que a tirasse rápido dali. E eu, eu vi o carro virar a esquina, se perder de mim. Abandonar meu mundo dizendo que era hora de retomar minha vida e sussurrando para eu ser feliz.

a cena é quase real, escrita em segundos. depois de horas em estado de choque, sem verbalizar nada, sem derramar uma lagrima, sem esboçar uma reação ou emoção

paris