a altura da dor e da prece

 quase posso precisar a medida de mim
mas apenas agora
perdoa
 
os espelhos que nossa casa abrigava
não me podiam cobrir toda a alma
 
as pontas que faltavam sempre
pelas molduras adormecidas em um quarto e outro
os reflexos pelos corredores da casa
nunca puderam precisar
o tamanho exato do que eu poderia ser
 
e ninguém nunca soube
dos pontiagudos estilhaços que se perdiam dos espelhos
e me feriam pés 
e me feriam olhos
e me levavam, gota a gota,
pedaços pequenos de mim
partes que me fariam falta no tempo em que eu precisasse saber
e dizer alto aos corredores
e a todas as faces penduradas sobre mim
- com a firmeza que me exigiam os dias -
o tamanho exato do que eu poderia ser
 
por isso, pai, ninguém nunca entendeu o tamanho de mim
por conta de pequenos cacos
de pontas e gotas que sempre faltaram ali
pelos quartos e corredores 
 
o que eu escrevia na parede a cal
as terríveis alegorias
os indizíveis temores
que nem eu pudesse traduzir naquela minha meninice
todos aqueles sonhos me refletissem, pai
e eu nem precisasse de espelhos, talvez,
pra me conter em medidas
 
eu fosse, quem sabe, da mesma infinitude
daquelas janelas altas demais
desenhadas em pedra e carvão sobre a cal
 
eu fosse, talvez, o mesmo indecifrável dialeto 
daquelas minhas preces tolas 
lamentos precoces ainda
pelas perdas do que eu nem sabia ainda precisar
 
minhas orações nunca salvaram ninguém
 
talvez porque eu devesse, em vez de janelas,
inventar escadas que me levassem além
e mais alto
 
não sei
 
sei que há um menino do outro lado da rua
que rabisca o muro do meu hotel
e desenha ali mundos em dialetos disformes
 
uma prece
 
é sempre uma prece
tudo é sempre uma prece
 
e peço por você
nesta noite fria
 
sou do tamanho do teatro, pai
tenho aquelas mesmas luzes
e o mesmo encanto em mim
 
não preciso de espelhos
 
posso precisar a medida de mim
mas apenas agora
 
longe e sozinho
 
perdoa
 
toma meu abraço frio 
nesta noite fria
nesta noite, pai
 
 
 
 
 
 
 

Capiau
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