DERRADEIRA LUCIDEZ ( CONTO )



Os olhares compungidos, traindo furtivas lágrimas dos parentes, já era o diagnóstico, não tardaria o fim. Debalde a luta persistente travada nos últimos meses, parece que não resistiria por mais tempo. O médico, como quem se resignava na impotência de novos recursos, assistia mais por solidariedade aos presentes que por ato da profissão, o quadro se complicava naquele recinto de despedidas.
 
O enfermo, entremeando lucidez e alucinações, vagava em dois planos, experimentando uma clareza no sentir que não conhecia. Na morfina encontrava o corpo anestesiado, livre da dor, vítima da doença que o carcomia aos poucos, refém apenas da extenuada resistência orgânica a ditar a migração definitiva para um outro estágio, ou o nada.
 
 Certo que estava de pleno juízo do que acontecia, nem o medo do desconhecido o visitava, apenas um estado cataléptico, em nuances de  consciência, ora presente ou distante nas reminiscências vivas, de momentos pretéritos a retornarem intensos. Rastros que se perderam, asas que não voaram, emoções não compartilhadas. O medo de viver tolhendo atitudes em várias situações, arquivadas na memória e esquecidas no correr dos anos, mas revividas nas lembranças naqueles cruciais momentos, incapaz de fugir delas, revivendo-as.
 
 Se pudesse chorar, o faria, não de desespero, de emoção. Via-se altaneiro em posições outrora assumidas e covarde e temeroso em tantas outras, sem julgamentos de certo ou errado, protagonista de sua própria história, num filme veloz se descortinando naquela tela aberta de sua peregrinação existencial.
 
Se aqueles olhares piedosos pudessem compartilhar sua aventura derradeira, talvez se emocionassem com ele, não pela dor da ausência próxima, e sim compartilhando sua história descortinada em detalhes na sua tela mental, feito cinema. Eles lamentavam a sua morte, e ele, não podendo se comunicar, amortecido pelas drogas medicamentosas, queria externar que estava mais vivo do que antes, quando andava, falava, se movimentava.
 
 Como abrir de gavetas, retirando pedaços de sua trajetória reconstituída na íntegra de detalhes, nas sensações renascidas de suas experiências. Via-se com impressionante respeito a si mesmo, como entendendo suas atitudes menos valorosas, perdoando-se pela tibiez em muitas situações vividas.  Enaltecia-se por realizações ainda que pequenas e cheias de humanismo e dedicações.
 
Assistia-se a si mesmo na história da sua própria vida, nem herói, nem vilão, apenas um Ser humano, com acertos e erros, medos e convicções. Viu-se pai amoroso, marido leal e desleal algumas vezes, honesto e nem tanto em atos e intenções, íntegro e vacilante, franco e hipócrita, desprendido e ambicioso, paciente e impetuoso, crente e descrente, nas várias faces de si mesmo, sem julgamentos e recriminações. Apenas um aprendiz da caminhada, estudante da vida nos tropeços e vitórias.
 
Momentos extremos, não um Juízo final, apocalíptico e temido, momentos derradeiros, iluminava-se por inteiro, em estranha e plácida lucidez. Sequer reivindicava auxilio, sem muletas em crenças e religiões, viajava dentro do torvelinho de suas vivências, no clamor íntimo a excusá-lo de suas falhas, tolerante consigo mesmo, pai protetor de si próprio, bastando-se, enxergando-se como jamais pensou ser possível, vendo o menino ainda necessitado de amparo paternal nas dúvidas e incertezas da jornada que findava.
 
 Desnuda de alegorias, de vernizes artificiais, experimentava a face humana, crua, sem estertores, ou gemidos, nas torturas da matéria decrépita e exangue, estava forte, inteiro, uma ave pronta para o retorno, no espaço amplo de sua interminável viagem, da qual aquele instante antes era um intervalo que o fim definitivo.
 
Depunha na arena terrena, sem vencidos e vencedores, as suas armas, abstinha-se de ódios, mágoas e rancores. Antes abria os braços, buscava afetos, perdoava pretensos inimigos, enlaçando luzes e semeando flores. Perdoando incondicional e se entendendo e se perdoando igualmente, soterrando orgulhos e maus humores. Relevando contendas, espinhos encravados na carne, sem exigências de revides, se desarmando. Refazendo passos, desenganos, aliviando-se, enxugando lágrimas, cultuando amores.
 
Pássaro alado, alçando voos, rumo às estrelas, retemperando-se para novas aventuras, proscrito filho que retorna à pátria.
 
Finda estava a presente jornada, expirava, agônico, despedindo-se da matéria...
 

 

** Publicado em livro em antologia de contos, editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ.