Pequena peça em 1 ato.

Prólogo

O trabalhador assalariado pode.
O trabalhador reforma-se, atarantado,
e busca, indolor, o seu pequeno gozo,
(o dia-a-dia nos botequins, o futebol),
à sombra da toga negra
da democracia.

Todos os dias, o trabalhador vai
p'ra faculdade dos céus cinzentos. Na sala fria,
vira ícone, prima-dona, um deus menor, o rei-sol -
seu compêndio maior, o seu manual,
o que folheia todos os dias,
é medida certa, mas prova talvez
p'ros juizes corrompidos.

O trabalhador batalha, e sorri. É elite -
tem emprego, come, dorme, vê televisão,
escuta rádio, bebe da brahma e da pinga...
seu perfil varrido, o rei-da-porrinha, a sua ginga,
o prumo e o esquadro e o martelo na mão
o destacam entre seus pares.

E nas tardinhas ensolaradas
e sonolentas de domingo, pontifica
sempre justo, grave, magnânimo,
é quase um juiz-de-paz.

Primeiro Intervalo

("Quem me dera, ao menos uma vez",
pensa a mulher do peladeiro, a menina,
a dona-de-casa, a ex-atriz).
Não se queixa e nem exulta co'a boa nova,
a ausência do seu homem na lista de cortes.

Enquanto passa a ferro
a camisa listrada do seu consorte,
reclama sempre, abafada, da linha, do puído,
da falta de jeito, o asco, o terror,
os preços (a fala travada por um triz).

Mas engole o cuspe sempre, e vence a morte;
pois, na ponta do lápis, o mundo não é perfeito,
e ela não é Vasco e nem Flamengo.

Ohlha pela janela, afasta da cabeça o seu monstrengo,
vara distraída a janela e a cortininha de filó, e xinga de longe
a puta vendada, a reclinada puta vendida
que jaz na parede frontal
do palácio prateado.

Não por vaidade, pensa, mas por estar só,
queria mais justiça, não ter a cabeça assim, tão cariada,
queria não ter aberta no peito farto a funda ferida
cotidiana de afundar no seu pântano,
a sua sala de estar.

Agora, queria apenas tatuar
com a faca de cortar carne
o ventre moreno e liso do seu
próprio magistrado.

Segundo Intervalo

E o juiz-operário, augusto, olímpico, atarefado,
sempre gera espinhas, pústulas asséticas,
na cara da moça-trabalhadora...

Piccolo Finale

E a mulher, a vetusta jovem senhora,
Ohlha nostálgica de novo pra puta vendada,
e quase desiste da sua sorte...

A dama do menino-peladeiro ajeita,
cuidadosa, as dobras e a gola da camisa listrada,
dobra os meiões e o calção, dá um lustro nas chuteiras,
esquece da vida porca e da boa-morte, e
se deita atravessada na cama-de-casal.

“Estandarte e escudo valente pra sempre serei”, pensa,
do seu herói-proletário, da sua flor-do-mal,
que pr'a ela não envelhecerá jamais -
PeterPan criador de mágicos anoiteceres,
sua suavíssima e secreta lady,
origem e término desconformes
de seus gozos e prazeres...

Devaneios meus sobre o que é justo e o que é preciso fazer.

Búzios, num dezembro muito quente.

Fernando Naxcimento
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