Eu sou da época da prateleira

Eu sou da época da prateleira. Aquela que ficava na cozinha e era enfeitada com panos cortados em formas triangulares, usada para colocar panelas de alumínio devidamente areadas.
O ritual do fim de semana era arear panelas e cada mulher virtuosa tinha a sua técnica. Algumas usavam um pouquinho de areia junto ao Bombril e, depois de areadas, as panelas eram colocadas ao sol para secarem sem manchas. O verbo arear deve ter nascido desta prática.
Hoje,  a coisa está sofisticada. Vieram os armários, panelas pretas, esmaltadas, de vidro, inoxidáveis, facas elétricas e tudo quanto é parafernália eletrônica. Outro dia, vi uma faca, de cortar bolo, que tocava uma música a cada pedaço de bolo que era servido. Coisa chique!
São tantas as facilidades que pensamos não poder mais viver sem elas. Quando o forno de microondas daqui de casa queimou, pensei que o mundo iria se acabar, mas, depois de um ano sem conserto, cheguei à conclusão de que não me faz falta alguma. Voltei a esquentar a comida misturando tudo na frigideira e fazendo um “mexidão”. O mexido está tão famoso que logo monto uma franquia.
As coisas antigas tinham suas vantagens, mas é porque queremos tudo bonitinho que os armários escondem as panelas que não brilham mais. Quando as panelas brilhavam, dava gosto de vê-las enfileiradas, representando asseio e organização.
Outro dia tive uma alegre surpresa, quando visitei  Ana de Deus, nossa amiga que mora no no bairro do Arranchadouro. Deparei em sua cozinha com as velhas  prateleiras da minha infância, recheada de panelas cuidadosamente areadas.
Nesse dia, a Ana não estava bem de saúde e por isso aconselhei-a, a diminuir o ritmo, principalmente no quesito arear panelas.
Fiquei surpresa com a resposta que ela me deu:
- Eu adoro arear os meus caquinhos!

Entendi, então, que a felicidade dela consistia em admirar o brilho de suas panelas, depois de areá-las a cada final de semana, e expô-las como troféus em suas prateleiras.

Selma Nardacci dos Reis
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