Sentimento de Garoa.

 Mais uma manhã cinza de garoa, tão São Paulo...
- Ei moço! – Gritou um menino qualquer.
- Dois é um real! – Mesmo homem, mesma venda, mesmo grito, sem rosto.
- Ele é mo folgado meu... – Conversa alheia.
Nada disso importa, só faz parte do caminho. Você não se mete, eles não se metem e ninguém perde tempo. Merda, vou me atrasar!
- Ei moço, olha aqui! – Mesmo garoto qualquer.
Mesmo garoto? Então, já não é mais qualquer garoto? É comigo? Caralho! É comigo! Vou me atrasar... Passa reto, segue, finge, ignora e rápido. Quem não para e nem olha, também não ouviu.
- Oh moço, olha a gente aqui ó! – Eu estava errado, eram 2 garotos e eles acabaram de me bloquear o caminho. Perfeito! Vou responder rápido e seguir mais rápido ainda pra compensar a perda de tempo.
- Oi, bom dia! – Eles baixaram a cabeça, acanhados com minha resposta. Acho que minha presa acabou deixando o tom das palavras rudes em minha boca.
- Ei, bom dia! Vocês são irmãos? – Tentei novamente, num tom mais amistoso.
- A gente é gêmeos! – Falaram e caíram numa gargalhada estridente e moleca. Puta que pariu, vou me atrasar mesmo! Ah! Que se foda, agora! Emendei na gargalhada.
- A gente quer saber o que é “por o pé na estrada”. – Assim! Simplesmente deixaram de rir pra me fitar em silêncio ao aguardo de uma resposta. Mas, por que a minha resposta? Por que eu? Não havia outro adulto ali, um pai, uma mãe, tio, outro? Justo eu? É... Talvez não houvesse ninguém melhor pra respondê-los esta pergunta, mas também não havia alguém mais desinteressado em fazê-lo.
- É sair de algum lugar, ir pra rua. Geralmente, sair de casa – Pronto, respondi. Agora poso seguir meu caminho com o dobro de pressa; fui.
- Como faz isso moço! - Gritaram atrás de mim, me obrigando a virar e responder.
- Com coragem! – Respondi, os meninos riram e... Meu alarme tocou! Tocou! Alarme... Tocando... Não havia mais tempo pra dormir. Acordei.
Meu Deus, foi só um sonho? Se foi, vou ter que fazer tudo de novo e a pior parte é levantar. Argh, está frio! Tão São Paulo... Eu já estava na rua. Não foi? Ou foi a rua da estação que virou uma cama? Hahahaha! Se eu não tivesse acabado de acordar juraria que tinha fumado maconha. Ok, foi só um sonho mesmo e você vai ter que levantar. Mas, e os garotos? Aaaaaah... Esquece os garotos e vamos levantar! 5 minutos na cama e você já está atrasado e se atrasar aqui é morrer um dia.
Isso! Levantou, agora olha a janela! Vê o dia! Pra quê? Neste mundo concreto o céu está ainda mais escuro, somente a garoa e a pressa são exatamente as mesmas. Concreto... Real... Concreto é a coisa mais real nesta cidade, não é? Falar de uma dura realidade é tão clichê, principalmente pra um nordestino. Mas, pensa só! Aonde você vai aqui que não tem concreto? Quanto tempo você passa sem ver ou estar apoiado em concreto durante o dia? Tempo... Dê um tempo de pensar! Melhor, pense e faça pra não fazer errado e nem esquecer das coisas. Agora sai do banheiro vestido, põem o pão na torradeira e o café no microondas, enquanto isso vai no quarto e pendura toalha na porta. Putz! Esqueci a porra da toalha! Perdi tempo, tenho que voltar no banheiro só porque eu esqueci... O que eu esqueci? Da coragem? E como havia de esquecer, se a saudade insiste em me lembrar com seus sermões. Se já não bastasse ela, agora tenho estes erês em meus sonhos pra me lembrar do que deixei para trás. Bahia, minhas baianas, amigos, família... Ah, o céu! Aquele céu límpido de todas as manhãs. Sempre achei que ele zombava de mim, talvez não exista céu mais sádico do que o das cidades litorâneas. Tão convidativo, que nos faz lembrar o motivo de não podermos estar naquele exato momento usufruindo de sua companhia agradável à beira-mar ou numa piscina.
Friiiio! Agora veste a jaqueta, senta toma o café e desfruta do primeiro momento prazeroso do dia. Comida e bebida quente, enquanto vê o noticiário no sofá. Isso, mas só da tempo pra um notícia, viu! Caralho... Foi coragem mesmo ou loucura? De novo isso, não vai prestar atenção ao jornal? Acho que a maior parte foi por curiosidade e o resto coragem. Eram tantos sonhos... Admito! Tem que ter coragem para sonhar e se embrenhar na busca sem nenhuma garantia. Talvez, se eu tivesse ouvido antes o Criolo:
“São Paulo é um buquê
Buquês são flores mortas
Num lindo arranjo
Arranjo lindo feito pra você”
                Flores mortas hein Criolo? Mas, eu discordo do nome da canção. Onde já se viu? “Não tem amor em SP.” Não tem como viver aqui se não for por amor. Afinal, SP tem seus encantos em cores e não é a garoa ou poluição que perpetua este sentimento cinzento. A questão é que torna-se difícil distinguir as cores quando se está o tempo todo em meio a penumbra. Vivendo à sombra da saudade, este amor de Estocolmo.

Walter Borges
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